Os Mais Belos Sonetos

Coletânea de sonetos escritos por poetas brasileiros, lusos e de outros paises

Afonso Celso

Ela, às vezes, nas rendas da mantilha,
Com a esbelteza audaz de uma espanhola,
A trança negra, onde áureo pente brilha,
E o busto altivo donairosa enrola;

E provocante, lânguida, casquilha,
Desferindo fragrâncias de corola,
Cativa muito orgulho, que se humilha
Pedindo amor, como quem pede esmola!

Então, os seus olhares atrevidos,
Não sei por que, recordam dois bandidos,
Armados de punhais longos e finos,

Que entre as moitas floridas da alva estrada,
Traiçoeiramente, ficam de emboscada
Para assaltar incautos peregrinos! 

Marcelo Gama

Vim sarar tédios, longe da cidade,
A convite e conselho de um amigo,
Neste sombrio casarão antigo
Onde tudo tem ares de saudade.

"Vem para o campo que a paisagem há de
Curar-te". Mas, curar-me não consigo:
Ontem o riso esteve bem comigo;
Hoje me sinto cheio de ansiedade.

Sou assim, como as asas do moinho
Que, lá distante, à beira do caminho,
Por entre casas velhas aparece:

Gira ao norte, ora ao sul, depressa, lento...
Parece doido aquele cata-vento!...
Mas como ele comigo se parece! 

Alberto de Oliveira

Olhos fitos na altura, enquanto morre
A tarde, enquanto à flor do firmamento
Correm as nuvens, como as nuvens, corre
Até junto de Deus teu pensamento.

Ao filho enfermo, nesse atroz momento,
Pedes que ele socorra; e enquanto escorre
O pranto, da oração no exaltamento,
Mãe sublime, supões que ele o socorre.

Mas um grito de súbito no centro
Ouves do coração pressago. Ansiando
Entras em casa. O filho está lá dentro

Morto, e ao beija-lo lhe ouves inda, ó louca!
De teu nome saudoso o rumor brando
Das derradeiras sílabas na boca.

Cruz e Sousa

Quando vens para mim, abrindo os braços
numa carícia lânguida e quebrada,
sinto o esplendor de cantos de alvorada
na amorosa fremência dos teus passos.

Partindo os duros e terrestres laços,
a alma tonta, em delírio, alvoroçada,
sobe dos astros a radiosa escada
atravessando a curva dos espaços.

Vens, enquanto que eu, perplexo de espanto,
mal te posso abraçar, gozar-te o encanto  
dos seios, dentre esses rendados folhos.

Nem um beijo te dou! Abstrato e mudo
diante de ti, sinto-te, absorto em tudo,
Nuns rumores de pássaros nos olhos.

Luís Guimarães Júnior

Corta o navio as águas encrespadas
Do mar convulso, tenebroso e imenso;
Das noites as asas, o sendal extenso
Cobrem do espaço as névoas agitadas;

Longe, bem longe - as cores desejadas
Do farol, entre o céu e o mar suspenso,
Rompem da noite o nevoeiro denso,
Guiando o barco às plagas afastadas.

Assim também seguro caminhando
Vai meu amor em meio dos escolhos,
Tal como o lenho as ondas recortando:

Que importa a dor, o frio, os crus abrolhos,
Se eu vejo sempre além vir despontando
A clara luz dos teus profundos olhos! 

José Albano

Dize que me amas sempre, amiga minha,
Abril maravilhoso se avizinha
E docemente os verdes campos junca
De malmequeres que não morrem nunca.

Prendem-me os teus cabelos ao meu peito
E nunca este prazer seja desfeito.
De mil flores a vida se perfuma
E nunca cesse esta delicia suma.

Mas antes sempre noite e dia aumente
Cada vez mais constante e mais ardente,
Quando emudece a entrecortada fala.

E o olhar vagos desejos assinala,
Quando amor faz que mais amor se adquira
E o coração a coração suspira.

Cruz e Sousa

Fazes lembrar as mouras dos castelos,
as errantes visões abandonadas
que pelo alto das torres encantadas
suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
acordam-te nas formas delicadas
saudades mortas de regiões sagradas,
carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia
dá-te segredos de melancolia,
da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas
vão morrer no calor dessas madeixas,
nas virgens florescências do teu sono. 

José Albano

Amar e não viver, senão amando,
Quem pôde imaginar gozo mais brando?
Quando brilha nos olhos a ternura,
Toda desfeita em luz serena e pura.

Quando nasce nos lábios a promessa
E o coração a suspirar começa,
Quando o sorriso fala e o beijo canta
Numa quietação suave e santa.

Amor, não deixa mais que amor nos doa,
E a alma com alma pelo espaço voa.
Vem, casta amiga minha, cristã formosa,

Aonde com a açucena cresce a rosa,
Aonde o cravo se une à violeta,
Antes que maio novos dons prometa... 

Cruz e Sousa

Pelas regiões tenuíssimas da bruma
vagam as Virgens e as Estrelas raras...
Como que o leve aroma das searas
todo o horizonte em derredor perfuma.

Numa evaporação de branca espuma
vão diluindo as perspectivas claras...
Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras
as Estrelas apagam-se uma a uma.

E então, na treva, em místicas dormências,
desfila, com sidéreas latescências,
das Virgens o sonâmbulo cortejo...

Ó Formas vagas, nebulosidades!
Essência das eternas virgindades!
Ó intensas quimeras do Desejo...

Olavo Bilac

De outras sei que se mostram menos frias,
Amando menos do que amar pareces.
Usam todas de lágrimas e preces:
Tu de acerbas risadas e ironias.

De modo tal minha atenção desvias,
Com tal perícia meu engano teces,
Que, se gelado o coração tivesses,
Certo, querida, mais ardor terias.

Olho-te: cega ao meu olhar te fazes...
Falo-te - e com que fogo a voz levanto!
Em vão... Finges-te surda às minhas frases...

Surda: e nem ouves meu amargo pranto!
Cega: e nem vês a nova dor que trazes
À dor antiga que doía tanto!

Artur Azevedo

Há cinco meses já que estão casados.
Da lua de mel os últimos lampejos
Gozam, trocando aborrecidos beijos,
Numa larga poltrona acomodados.

Falam do tempo em que eram namorados...
Tempo menos de amor que dos desejos...
Separam-se, afinal e entre bocejos,
Ele fuma... ela borda... ambos calados.

De repente ela se ergue e o rosto esconde,
Saltando um grito estrídulo, indiscreto.
Ao que o eco da sala corresponde.

Ele interroga-a pálido, inquieto...
Ela trêmula e rubra lhe responde...
Sente no ventre remexer-se um feto. 

Silva Ramos

Quantas vezes me viste sem te eu ver,
E quantas eu te vi que me não viste...
E só agora, ao ver que me fugiste,
Eu vejo o que perdi, em te perder.

Estranha condição do estranho ser
Que alegre vive nesta vida triste:
Que só saibamos em que o bem consiste,
Quando o bem só consiste no morrer.

Quão feliz eu seria, se, na hora
Em que te vi, te visse como agora,
Ideal, nos meus sonhos ideais!...

Se o que eu sinto por ti sentir pudera,
Então, sorrindo, eu te diria: Espera,
E hoje, chorando, não te espero mais.

Olavo Bilac

Sai a passeio, mal o dia nasce,
Bela, nas simples roupas vaporosas;
E mostra às rosas do jardim, as rosas
Frescas e puras que possui na face.

Passa. E todo o jardim, por que ela passe,
Atavia-se. Há falas misteriosas
Pelas moitas, saudando-a respeitosas...
É como se uma sílfide passasse!

E a luz cerca-a, beijando-a. O vento é um choro
Curvam-se as flores trêmulas... O bando
Das aves todas vem saudá-la em coro...

E ela vai, dando ao sol o rosto brando.
Às aves dando o olhar, ao vento o louro
Cabelo, e às flores os sorrisos dando... 

Luís Guimarães Júnior

Tu és famosa, ó bela, és celebrada
Como as deusas de Lesbos e de Atenas;
És a rival das lúbricas Helenas,
És a moderna Aspásia idolatrada;

Sobre essa boca úmida e culpada
Folgam do Gozo as imortais falenas;
És o tesouro das gostosas penas
Que cega e atrai a alma escravizada;

Rola a teus pés o cofre da opulência,
Um teu sorriso é da fortuna a origem,
Um teu aceno arrasta a consciência:

No entanto, às vezes, uma atroz vertigem...
- “É que nesse momento a Providência
Vara-me a alma com um olhar de virgem!”

Luís Guimarães Júnior

É meia noite. O hino funerário
Das doze angústias voa doloroso
Entre os raios da lua, e majestoso
Rodeia a cruz do velho campanário.

Tudo é silente. O espectro solitário
Do remorso e do amor paira onduloso
Nas mudas trevas, - arrastando um gozo,
Ou as medonhas fímbrias de um sudário.

Mas o Poeta, erguendo a fronte ousada,
Faiscante de límpida alegria
E de virentes ilusões ornada,

Ouve a sorrir a lúgubre elegia,
Pois em sua alma ardente e deslumbrada
Jorra em ondas de luz: - é meio dia!

Aníbal Teófilo

Em solitária, plácida cegonha.
imersa num cismar ignoto e vago,
num fim de ocaso, à beira azul de um lago,
sem tristeza, quem há que os olhos ponha?

Vendo-a, Senhora, vossa mente sonha.
Talvez que o conde de um palácio mago
loura fada perversa, em tredo afago,
mudou nessa pernalta erma e tristonha.

Mas eu que, em prol da Luz, do pétreo e denso
véu do Ser ou Não-Ser, tento a escalada,
qual morosa, tenaz, paciente lesma,

Ao vê-la assim, mirar-se na água, penso
ver a Dúvida humana debruçada
sobre a angústia infinita de si mesma! 

Luís Guimarães Júnior

Quando eu contemplo os olhos teus, ó pura
Obra de Deus num dia abençoado,
Sinto que voo aos astros enlaçado,
Preso aos raios da tua formosura.

E uma gostosa e matinal frescura
Tal como um véu de beijos recamado,
Cobre o meu coração fanatizado,
Cego de amor e cego de ventura.

És como a Lua plácida e erradia:
Ao teu olhar meu coração ansioso,
Igual aos bosques quando expira o dia,

Repousa envolto num tremente gozo,
E a ti se eleva a minha poesia
Bem como a voz dum rouxinol medroso. 

Luís Guimarães Júnior

Vás para o baile, é hora: as flutuantes
Gazes te envolvem como as névoas puras
Que os astros vestem nas azuis alturas...
Vás coberta de gaze e de brilhantes;

E, enquanto espalhas graças deslumbrantes,
Repleta de opulência e de venturas,
Há um milhar de pobres criaturas,
Que se estorcem - na noite - agonizantes:

Moças sem pão, crianças magras, nuas,
Cujo suplício fora aliviado,
Se quisesses das pálidas mãos tuas,

Num santo gesto, rápido e ignorado,
Deixar cair na lama dessas ruas
Um alfinete só do teu toucado. 

Carlos Arnaud

Já não tenho a força da juventude
Nem a ilusão de um sonho por viver
Mas guardo na memória a plenitude
De tudo o que vivi e pude ser.

Não me arrependo das escolhas feitas
Nem das tristezas que enfrentei na vida
Pois cada uma delas me ensinou, suspeitas
A valorizar as coisas mais queridas.

Sei que as vezes me faltou o discernimento
E que preciso aproveitar o que me resta
Mas não me deixo abater pelo lamento.

Mesmo velho tenho devaneios e esperanças
E nunca me entrego à solidão funesta
Porque sei que a vida é feita de mudanças.  

Carlos Arnaud

O amor é um mistério que transcende,
A razão e a ciência que o medem.
É uma força que anima e que acende,
A chama da vida que nos pedem.

O amor é uma arte que se aprende,
Com paciência e prática que o medram.
É uma obra que se esculpe e se emende,
Com cuidado e perfeição que o enredam.

O amor é um mito que se entende,
É uma lenda que se conta e se rende,
À magia dos deuses que o precedem.

O amor é um sonho que se vive,
É uma realidade que se esquive,
Da rotina e do tédio que o antecedem.

Carlos Arnaud

A dor que sinto é como um mar agitado,
Que me afoga em tristeza e solidão.
Não há paz para meu ego machucado
Nem alívio a toda minha aflição.

A vida é dura e cruel, sem piedade,
Um grande amor é somente uma ilusão,
Inexiste esperança na minha verdade,
Nem luz no fim do meu caminho vão.

Mesmo assim eu sigo firme em frente,
O peito cheio de mágoas e descrente,
O coração partido, mas com cautela.

Sei bem um dia, esse rancor que sinto,
Vencido pelo amor será totalmente extinto,
E minha alma ficará com toda a sequela.

Carlos Arnaud

Seara divina dentre verdes montanhas, 
Que embora formosas, têm formas discretas 
E encantam aventureiros, encantam poetas 
Que aqui chegam de terras estranhas...

Às margens de um rio, que lhe dá pujança
Que leva nas águas o riso e a cantiga
De um povo ordeiro, feliz e de alma amiga 
Que tem no peito o amor e a esperança...

Onde a história se fez de luta e glória
Onde a liberdade se conquistou na vitória
E se escreveu nas páginas do coração...

Onde eu cresci, me formei e quero ficar
Pois não há lugar que me faça mais amar
Do que essa terra abençoada de paixão... 

Olavo Bilac

Paixão sem grita, amor sem agonia,
Que não oprime nem magoa o peito,
Que nada mais do que possui queria,
E com tão pouco vive satisfeito...

Amor, que os exageros repudia,
Misturado de estima e de respeito,
E, tirando das mágoas alegria,
Fica farto, ficando sem proveito...

Viva sempre a paixão que me consome,
Sem uma queixa, sem um só lamento!
Arda sempre este amor que desanimas!

Eu, eu tenha sempre, ao murmurar teu nome,
O coração, malgrado o sofrimento,
Como um rosal desabrochado em rimas.

Castro Alves

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso
que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada...
Sobre as névoas te livras vaporoso...

Baixas do céu num voo harmonioso!...
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
cerca-te a fronte, ó ser misterioso!

Onde nos vimos nós? És doutra esfera?
És o ser que eu busquei do sul ao norte...
Por quem meu peito em sonhos desespera?

Quem és tu? Quem és tu? - És minha sorte!
És talvez o ideal que esta alma espera!
És a glória talvez! Talvez a morte!

Olavo Bilac

Sobre minha alma, como sobre um trono,
Senhor brutal, pesa o aborrecimento.
Como tardas em vir, último outono,
Lançar-me as folhas últimas ao vento!

Oh! dormir no silêncio e no abandono,
Só, sem um sonho, sem um pensamento,
E, no letargo do aniquilamento,
Ter, ó pedra, a quietude do teu sono!

Oh! deixar de sonhar o que não vejo!
Ter o sangue gelado, e a carne fria!
E, de uma luz crepuscular velada,

Deixar a alma dormir sem um desejo,
Ampla, fúnebre, lúgubre, vazia
Como uma catedral abandonada!...

Alphonsus de Guimaraens

Aberta a pobre mão como a pedir a morte,
Olhos que vinham de mais longe que os poentes,
Ela surgiu-me branca e pura de tal sorte
Que vi passar por mim sombras inexistentes.

Gemei, gemei ao luar, vento sul, vento norte!
E com toda a fluidez dos seus olhos doentes,
Olhou-me calma e triste... Oh pálida consorte,
Quem pudera chorar as saudades que sentes!

Olhos não vistos, céu de nimbos, mar de escolhos,
Ela abaixou-vos para o chão com gesto brando,
Porque o céu ninguém pode abrangê-lo com os olhos.

Como quem se recorda olhou para os caminhos.
Há tantos anos já que te vi soluçando
Aos pés do Senhor Bom Jesus de Matosinhos!

Olavo Bilac

Este é o altivo pecador sereno,
Que os soluços afoga na garganta,
E, calmamente, o copo de veneno
Aos lábios frios sem tremer levanta.

Tonto, no escuro pantanal terreno
Rolou. E, ao cabo de torpeza tanta,
Nem assim, miserável e pequeno,
Com tão grandes remorsos se quebranta.

Fecha a vergonha e as lágrimas consigo...
E, o coração mordendo impenitente,
E, o coração rasgando castigado,

Aceita a enormidade do castigo,
Com a mesma face com que antigamente
Aceitava a delícia do pecado. 

Luís Guimarães Júnior

Olha-me assim, Madona... longamente:
Deixa minha alma em teu olhar piedoso
Flutuar num silêncio, amplo e radioso,
Como um navio à terna luz do poente.

Nada me digas: olha-me somente:
Assim... Meu coração, ébrio de gozo,
Vai rolando no abismo luminoso
No etéreo abismo desse olhar dormente.

A natureza mórbida e alquebrada
Repousa. A ebúrnea esfera constelada
Desmaia antes que a Aurora ao longe assome:

E eu, embalado nesse olhar radiante,
Feliz, absorto, extático, hesitante...
Ouço tua alma soletrar meu nome.

Olavo Bilac

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
- Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava:
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Ideia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?!

Alphonsus de Guimaraens

Às vezes, alta noite, ergo em meio da cama
O meu vulto de espectro, a alma em sangue, os cabelos
Hirtos, o torvo olhar como raso de lama,
Sob o tropel de um batalhão de pesadelos

Pelo meu corpo todo uma Fúria de chama
Enrosca-se, prendendo-o em satânicos elos:
- Vai-te Demônio encantador, Demônio ou Dama,
Loira Fidalga infiel dos infernais Castelos!

Como um danado em raiva horrenda, clamo e rujo:
Hausto por hausto aspiro um ar de enxofre: tento
Erguer a voz, e como um réptil escabujo.

- Quem quer que sejas, vai-te, ó tu que assim me assombras!
Acordo: o céu, lá fora, abre o olhar sonolento,
Cheio da compunção dos luares e das sombras.  

Alphonsus de Guimaraens

Com a vasta escuridão do teu cabelo ensombras,
Se o destranças pelo ar, o próprio sol que bate
Nessa carne que tem a maciez das alfombras
Feitas de seda branca e veludo escarlate.

Não sei quem és e ao mesmo tempo assombras.
Alguma coisa de astro o teu sorriso dá-te…
Errante multidão de espectros e de sombras
Anda em redor de ti como para um combate.

Para quê, para quê tanta mágoa me deste?
Por que surgiste aqui, na minha noite espessa,
Tu, Rainha imortal de algum Sabá celeste?

Fantasma, és a Mulher! Levanta-te, Anjo eterno!
Ergue-te mais, e mais! Como a tua cabeça
Pode tocar o Céu, se tens os pés no Inferno?  

Antero de Quental

Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento…

Como um canto longínquo - triste e lento -
Que voga e sutilmente se insinua,
Sobre o meu coração, que tumultua,
Tu vertes pouco a pouco o esquecimento…

A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando, entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Gênio da Noite, e mais ninguém!

Antero de Quental

Meus dias vão correndo vagarosos
Sem prazer e sem dor, e até parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece...
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira...

Porém do pressentir dá-me a certeza,
Dá-me! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza! 

Antero de Quental

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos dum fôlego as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas;

Ou, vendo o mar das ermas cumeadas
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longo, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão e empalideces

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

Auta de Souza

Na gaze loura deste leque adeja
Não sei que aroma místico e encantado…
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado

Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado…
Até minha alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.

E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,

Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores! 

Alberto de Oliveira

É um velho paredão, todo gretado,
Roto e negro, a que o tempo uma oferenda
Deixou num cacto em flor ensanguentado
E num pouco de musgo em cada fenda.

Serve há muito de encerro a uma vivenda;
Protegê-la e guardá-la é seu cuidado;
Talvez consigo esta missão compreenda,
Sempre em seu posto, firme e alevantado.

Horas mortas, a lua o véu desata,
E em cheio brilha; a solidão se estrela
Toda de um vago cintilar de prata;

E o velho muro, alta a parede nua,
Olha em redor, espreita a sombra, e vela,
Entre os beijos e lágrimas da lua.

Amadeu Amaral

Minha alma é uma casa abandonada
por cujos tenebrosos corredores
volteia a ronda volatizada
dos espectros de mortos moradores.

Um dia a esta mansão mal-assombrada,
afugentando a treva e seus horrores,
entraste - alegre aparição alada -,
num explodir de claridade e olores;

mas de pronto fugiste, e hoje, silente,
esconde a velha casa à luz do dia
as mesmas sombras, que volteiam juntas...

Ah! Terei de guardar eternamente
na solidão desta alma escura e fria
estas saudades de ilusões defuntas!

Martins Fontes

Se eu fosse Deus seria a vida um sonho,
nossa existência um júbilo perene!
nenhum pesar que o espírito envenene
empanaria a luz do céu risonho!

Não haveria mais: o adeus solene.
A vingança, a maldade, o ódio medonho,
e o maior mal, que a todos anteponho,
a sede, a fome da cobiça infrene!

Eu exterminaria a enfermidade,
todas as dores da senilidade,
e os pecados mortais seriam dez...

A criação inteira alteraria,
porém, se eu fosse Deus, te deixaria
exatamente a mesma que tu és!

Augusto dos Anjos

O mar é triste como um cemitério;
Cada rocha é uma eterna sepultura
Banhada pela imácula brancura
De ondas chorando num alvor etéreo.

Ah! dessas vagas no bramir funéreo
Jamais vibrou a sinfonia pura
Do Amor; lá, só descanta, dentre a escura
Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,
Banhando a fria solidão das fragas,
Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma,

Reflete a luz do sol que já não arde,
Treme na treva a púrpura da tarde,
Chora a Saudade envolta nesta espuma!

Alphonsus de Guimaraens

Lírio do vale perdido na corrente,
Segue formosa e fria entre outros lírios...
Na cabeça, uma coroa de martírios;
Nos olhos virginais, a paz silente.
 
As estrelas virão acender círios
No fundo deste leito, suavemente:
E a lua beijar-lhe-á, calma e dolente,
– A lua que abençoou os meus delírios.
 
Que venha o vago luar que anda nas covas
Atolar-me a fronte, onde vagueia
O beijo etéreo e trágico de Hamleto...
 
Formosa como vou, com flores novas
Beijando a minha cor de lua-cheia,
O Príncipe ter-me-á Eterno Afeto. 

Antero de Quental

Entre os filhos dum século maldito
Tomei também lugar na ímpia mesa,
Onde, sob o folgar, geme a tristeza
Duma ânsia impotente de infinito.

Como os outros, cuspi no altar avito
Um rir feito de fel e de impureza…
Mas um dia abalou-se-me a firmeza,
Deu-me um rebate o coração contrito!

Erma, cheia de tédio e de quebranto,
Rompendo os diques ao represo pranto,
Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na Fé o pensamento,
E achei a paz na inércia e esquecimento…
Só me falta saber se Deus existe!

Raimundo Correia

Doire a Poesia a escura realidade
E a mim a encubra! Um visionário ardente
Quis vê-la nua um dia; e, ousadamente,
Do áureo manto despoja a divindade;

O estema da perpétua mocidade
Tira-lhe e as galas; e ei-la, de repente,
Inteiramente nua e inteiramente
Crua, como a Verdade! E era a Verdade!

Fita-a em seguida, e atônito recua…
- Ó Musa! exclama então, magoado e triste,
Traja de novo a louçainha tua!

Veste outra vez as roupas que despiste!
Que olhar se apraz em ver-te assim tão nua?…
À nudez da Verdade quem resiste?!

Álvares de Azevedo

Um beijo ainda! os lábios teus, donzela,
Nos meus se pousem - junto de teu seio
Que treme-te e palpita em doce enleio
Beba eu o amor que teu olhar revela.

Vem ainda uma vez! és pura e bela,
Arfa-te o seio, amor, nos olhos te leio…
Que importa o mais? vem, anjo, sem receio!
Um beijo em tua face! inda outro nela!

Aperta-me ao teu colo - assim - um beijo
Desses em que ao céu uma alma se transporta!…
- E o mundo?… - Um louco. - E o crime? - Só te vejo.

- Mas quando a vida em nós gelou-se morta
- E o inferno? - Contigo eu o desejo.
- E Deus? – Meu Deus és tu. - E o céu? - Que importa!

Victor Silva

Só, dominando no alto a alpestre serrania,
Entre alcantis, e ao pé de um rio majestoso,
Dorme quedo na névoa o solar misterioso,
Encerrado no horror de uma lenda sombria.

Ouve-se à noite, em torno, um clamor lamentoso,
Piam aves de agouro, estruge a ventania,
E brilhando no chão por sobre a selva fria,
Correm chamas sutis de um fulgor nebuloso.

Dentro um luxo funéreo. O silêncio por tudo...
Apenas, alta noite, uma sombra de leve
Agita-se a tremer nas trevas de veludo...

Ouve-se, acaso, então, vaguíssimo suspiro,
E na sala, espalhando um clarão cor de neve,
Resvala como um sopro o vulto de um vampiro. 

Euclides da Cunha

A vez primeira que eu te vi, em meio
Das harmonias de uma valsa, elado
O lábio trêmulo, esplêndido, rosado,
Num riso, um riso de alvoradas cheio.

Cheio de febres, em febril anseio
O meu olhar fervente, desvairado
Como um condor de flamas emplumado
Vingou-se a espádua e devorou-te o seio.

Depois, delírio atroz, loucura imensa!
A alma, o bem, a consciência, a crença
Lancei no incêndio dos olhares teus…

Hoje estou pronto à lívida jornada
Da descrença sem luz, da dor do nada…
Já disse ontem à noite, adeus, a Deus! 

José de Bonifácio

Deserta a casa está… Entrei chorando,
De quarto em quarto, em busca de ilusões!
Por toda a parte as pálidas visões!
Por toda a parte as lágrimas falando!

Vejo meu pai na sala, caminhando,
Da luz da tarde aos tépidos clarões,
De minha mãe escuto as orações
Na alcova, aonde ajoelhei rezando.

Brincam minhas irmãs (doce lembrança!…),
Na sala de jantar… Ai! mocidade,
És tão veloz, e o tempo não descansa!

Oh! sonhos, sonhos meus de claridade!
Como é tardia a última esperança!…
Meu Deus, como é tamanha esta saudade!…  

Olavo Bilac

Todos esses louvores, bem o viste,
Não conseguiram demudar-me o aspecto:
Só me turbou esse louvor discreto
Que no volver dos olhos traduziste…

Inda bem que entendeste o meu afeto
E, através destas rimas, pressentiste
Meu coração que palpitava, triste,
E o mal que havia dentro em mim secreto.

Ai de mim, se de lágrimas inúteis
Estes versos banhasse, ambicionando
Das néscias turbas os aplausos fúteis!

Dou-me por pago, se um olhar lhes deres:
Fi-los pensando em ti, fi-los pensando
Na mais pura de todas as mulheres.

Florbela Espanca

Passo pálida e triste. Ouço dizer:
“Que branca que ela é! Parece morta!”
E eu que vou sonhando, vaga, absorta,
Não tenho um gesto, ou um olhar sequer…

Que diga o mundo e a gente o que quiser!
- O que é que isso me faz? O que me importa?…
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!

O que é que me importa?! Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!

E é tudo sempre o mesmo, eternamente…
O mesmo lago plácido, dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr… 

Vinícius de Moraes

De tanta graça e de leveza tanta
Que quando sobre mim, como a teu jeito
Eu tão de leve sinto-te no peito
Que o meu próprio suspiro te levanta.

Estou contra quem me esbato liquefeito
Rocha branca! brancura que me espanta
Brancos seios azuis, nívea garganta
Branco pássaro fiel com que me deito.

Mulher inútil, quando nas noturnas
Celebrações, náufrago em teus delírios
Tenho-te toda, branca, envolta em brumas

São teus seios tão tristes como urnas
São teus braços tão finos como lírios
É teu corpo tão leve como plumas.

Luís Pistarini Ela mandou-me, há dias, o retrato, — Um belo mimo em platinotipia — Que eu não canso de ver, e, dia a dia Mais se me torna bem querido e grato, Porque quando entre angústias me debato, Triste nas horas de melancolia, Basta fitá-lo, para que a alegria Banhe de luz o meu viver ingrato. Lembro-me dela, então saudosamente; E, a sorrir, nesses rápidos instantes, Eu me inflamo de amor de um modo tal, Que lhe beijo o retrato longamente, Com o mesmo ardor com que beijava dantes, Jubiloso e feliz, o original...

Mário Quintana

Sonhar é acordar-se para dentro:
de súbito me vejo em pleno sonho
e no jogo em que todo me concentro
mais uma carta sobre a mesa ponho.

Mais outra! É o jogo atroz do Tudo ou Nada!
E quase que escurece a chama triste…
E, a cada parada uma pancada,
o coração, exausto, ainda insiste.

Insiste em quê? Ganhar o quê? De quem?
O meu parceiro… eu vejo que ele tem
um riso silencioso a desenhar-se

numa velha caveira carcomida.
Mas eu bem sei que a morte é seu disfarce…
Como também disfarce é a minha vida! 

Francisco Joaquim Bingre

Se a ti, onde Amor leva o pensamento,
Meu triste coração levar pudesse,
Dó terias, cruel, do que padece,
Se ainda em teu peito cabe sentimento.

Amar sem possuir é um tormento
Que só quem o suporta é que o conhece.
Não o conheces tu, pois te arrefece
Sempre, na ausência, o frio esquecimento.

Tu tens um coração que se persuade
Dever amar só quando se deleita
Na posse do prazer, da sociedade.

O meu segue outra estrada mais direita,
Ama distante, ferem-no a Saudade
O Ciúme infernal, a vil Suspeita. 

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