Quem sou eu
- Carlos Arnaud de Carvalho
- São Domingos do Prata, Minas Gerais
- E nestas lutas vou cumprindo a sorte, até que venha a compassiva morte, levar-me à grande paz da sepultura.
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Alphonsus de Guimaraens
Sempre vivi com a morte dentro da alma,
Sempre tacteei nas trevas de um jazigo.
A sombra que me envolve é eterna e calma,
E sigo sem saber quem vai comigo.
O fantasma que o coração me ensalma
Não me ouve mais as orações que digo.
Não existe no solo uma só palma
Pela alameda olímpica que sigo...
Vós que ao meu lado viestes, visionários
Da esperança! ficastes no caminho,
Envolvidos nas dobras dos sudários...
Que seria de mim, se eu não tivesse
O calor subalar do teu carinho,
Ó minha ânsia, ó meu sonho, ó minha prece!
Corrêa de Araujo
De certo dormes, a tão altas horas,
Horas de espectros pela noite escura;
Lá na vila natal, onde tu moras,
Dormes e sonhas, bela criatura!
Sonhos, tangendo as cítaras sonoras,
Para os céus arrebatam-te a alma pura;
Dormes e eu velo, dormes e ignoras
A saudade infernal que me tortura.
Sonhas talvez com querubins alados,
E eu cismo aqui, entregue ao devaneio
Dos sonhadores e dos namorados...
Dormes, envolta em leves claridades,
E eu velo, e o coração me sangra, cheio
Da mais cruel de todas as saudades.
Alphonsus de Guimaraens
Quando te fores, branca, de mãos postas,
E me deixares neste vale de pranto,
Deitada assim, como as demais, de costas
Sobre o teu leve esquife de pau-santo:
Quando as rosas dos seios, decompostas,
Vierem causar à própria morte espanto,
E nessas tábuas vis, onde te encostas,
Te for o lodo o derradeiro manto:
Ainda hei de ver as lúcidas violetas
Que floriram no teu olhar incerto,
Por sob as tuas sobrancelhas pretas...
Ai! como Inês tu não serás rainha:
Mas amada hás de ser no céu decerto
Porque na terra nunca foste minha...
Corrêa de Araújo
Desfila a procissão... Entre fulgores
Dourados, já declina o sol no poente...
No andor, ornado de ouropéis e flores,
Vai a Santa levada triunfalmente...
Vendo a imagem sagrada, indiferente
Da turba, em roda, aos místicos fervores,
Recordo Essa que adoro doidamente,
Essa por quem enlouqueci de amores.
Meus sonhos junto dela, eram dispersos...
Exibo-a pelas ruas, noite e dia,
Num belo andor, aos ombros dos meus versos.
Alto proclamando-lhe a beleza e a graça...
E em vão! É tudo em vão! Ela é mais fria
Que esta Santa de mármore que passa!...
Alphonsus de Guimaraens
Bendita sois entre as mulheres! Puras
Irradiações de salmos encantados
De glória a ti, Senhora, nas alturas,
Por séculos de séculos sagrados.
Vejo, no entanto, as tuas Amarguras...
Senhora, que há de ser dos desgraçados,
Se tu, a mais feliz das criaturas,
Tens olhos em lágrimas banhados?
Feliz, bem sei, pois és quem Deus mais ama...
Donde me vem que a Mãe do Verbo eterno
Me venha a mim? Santa Isabel exclama.
Passa-te na Alma a inspiração sublime:
E dos teus lábios desce o brando e terno
Hino que a glória da tua Alma exprime...
Gonçalves Crespo
Era austero e sisudo; não havia
Frade mais exemplar nesse convento:
No seu cavado rosto macilento
Um poema de lágrimas se lia.
Uma vez que na extensa livraria
Folheava o triste um livro pardacento,
Viram-no desmaiar, cair do assento,
Convulso, e torvo sobre a lágea fria.
De que morrera o venerando frade?
Em vão busco as origens da verdade,
Ninguém mais disse, explique-a quem puder.
Consta que um bibliófilo comprara
O livro estranho e que, ao abri-lo, achara
Uns dourados cabelos de mulher...
Alphonsus Guimaraens
Voltas a ser de novo aquilo que tu eras.
A evocadora palidez do teu semblante
Faz-me pensar nas Virgens-Monjas de outras eras,
Quando de nós estava o Céu menos distante.
Na áurea correspondência estelar das esferas
A tua Alma nupcial há de passar triunfante.
O teu olhar reflete, entre vagas quimeras,
O Inferno, o Purgatório e o Paraíso de Dante.
Havia tal palidez ao redor do teu vulto,
Que eu disse ao ver-te aqui, nas terrenas idades:
O teu corpo já esteve entre flores sepulto...
Nesses restos de vida arde um fogo celeste:
Passam no teu olhar as longínquas saudades
Do esquife que deixaste ou do Céu de onde vieste...
Corrêa de Araujo
Morria... O abismo embaixo, esboroadas
Fauces horríveis para o espaço abria,
E eu suspenso no vácuo, as mãos pousadas
Nas margens negras, já sem fé morria.
Sei que caí mas que, ao cair, sagradas
Mãos me ampararam na voragem fria;
E, ao despertar, Alguém de asas douradas,
Alguém que eu amo, junto a mim sorria.
Eras tu! Amparaste-me a fugiste:
E eis-me de novo cheio de desditas!
E eis-me de novo desvairado e triste!
E clamo e gemo... que cruel contraste!
És tu agora que me precipitas
No meu abismo donde me tiraste!
Teófilo Dias
Sulcas o ar de um rastro perfumoso
Que os nervos me alvoroça e tantaliza,
Quando o teu corpo musical desliza
Ao hino do teu passo harmonioso.
A pressão do teu lábio saboroso
Verte-me na alma um vinho que eletriza,
Que os músculos me embebe, e nectariza,
E afrouxa-os, num delíquio langoroso.
E quando junto a mim passas, criança,
Revolta e crespa, luxuosa trança,
Na espádua arfando em túrbidos negrumes,
Naufraga-me a razão em sombra densa,
Como se houvera sobre mim suspensa
Uma nuvem de cálidos perfumes!
Augusto Gil
O amor é chama enorme que alumia
E nos consome e gasta o coração.
Uma fagulha o ateia — a simpatia,
Termina em labaredas — a paixão.
Tanto é maior a luz que ele irradia,
Quanto intensa é depois a escuridão.
A indiferença é como a cinza fria
Que fica dessa lenta combustão.
Senhora a quem amei perdidamente,
Não me entristece o seu desdém mordente,
Já nada me preocupa, nem me importa...
Porque, desde que vós me não amais,
O meu corpo doente não é mais
Que a tumba viva da minha alma morta...
Augusto Gil
De banza a tiracolo e capa à trovador,
Eu nunca fui cantar endechas amorosas,
Lirismos de Romeu junto aos balcões em flor,
Por sob o luar dormente e as nuvens vaporosas.
Tão pouco tenho a linha airosa, aristocrata,
Da fina flor do tom, os dândis adamados
Que andam pelos salões, monoculando, à cata
Dum dote que lhes salve a pança de cuidados.
Tenho, como qualquer, a aspiração ideal
Duma noiva gentil, dum ninho conjugal;
Mas tudo se desfaz se penso um só momento
Neste quadro banal, depois do casamento:
O sogro, a sogra, a esposa, um filho já taludo
E eu, muito aborrecido... a olhar para aquilo tudo.
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